Volta às aulas: o ponto arquimediano

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Daniel Medeiros*

Saber o que fazer é uma das coisas mais difíceis que existe no mundo. Quando tomamos uma decisão que afeta apenas a nós mesmos, já é um perrengue só. Agora, uma decisão que afete a vida de milhões de pessoas, é um verdadeiro inferno de Dante. E para decidir, qual deve ser nosso balizamento? Onde está o ponto mágico no qual poderemos colocar a nossa alavanca de Arquimedes? Decisões implicam, necessariamente, um percentual variável de erro. Logo, dizer que agimos de maneira certa é um pouco eufemístico e, no limite, um embuste. 

Há, porém,  formas para tentar minimizar essa irredutível incerteza. As evidências científicas, por exemplo. No entanto, diante de fatos novos, a velocidade das evidências deixa muito a desejar, exatamente porque para ser evidente tem de se ampliar a margem de segurança no que se diz e, enquanto isso, ficamos no vácuo do “será”, campo fértil para as especulações mais criativas.

Os cientistas ajudam, mesmo quando não têm respostas mais seguras, afirmando o que já se sabe sobre o que não se deve fazer. E, para isso, usam cálculos matemáticos razoavelmente simples. Se há uma doença que se transmite pelo ar, de pessoa para pessoa, por meio dos fluxos expelidos por alguém que está doente, manter-se distante dessa pessoa é uma coisa boa porque diminui percentualmente a chance de contaminação. Se não é possível manter-se distante o tempo todo, colocar um anteparo na boca e nariz para impedir que esse fluxo atinja as outras pessoas também parece razoável, pela mesma diminuição percentual de chance de contaminação. Se a pessoa saudável também usar esse anteparo, amplia ainda mais a chance percentual de evitar a contaminação. Somar as duas atitudes, ou seja, distanciamento e anteparo, torna o ambiente quase seguro, pois reduz drasticamente o percentual de chance de contrair a doença. É o que dá pra se dizer enquanto uma solução mais duradoura ou mesmo definitiva não aparece. Matemática, a boa e velha matemática.

O problema é que vivemos amontoados e são poucas as atividades nas quais seja possível evitar essa aproximação o tempo todo. Logo, um certo grau de aglomeração é inevitável – e de contaminação também, mesmo com o uso de máscaras. No entanto, se tivermos aparato médico hospitalar adequado e disponível, é possível tratar as pessoas que desenvolvam a forma mais grave da doença e diminuir ao mínimo os óbitos. Como lembrava o sociólogo Durkheim, a respeito do suicídio, o que é objeto de estudo não é a existência do suicídio em si, mas quando sua prática se torna anômala. Da mesma forma, morrer por doenças é uma realidade inescapável. Morrer por falta de planejamento, distribuição adequada de remédios e aparelhos médicos, coordenação para monitorar o funcionamento de áreas que criam aglomeração, entre outras atitudes, é que é o problema.

Uma dessas questões sobre a qual paira a espada de Dâmocles é o funcionamento das escolas. Depois de mais de quatro meses, o que se pode pensar sobre a volta ou não do seu funcionamento? As crianças e jovens têm sido, em parte, atendidos pelo ensino remoto. Algumas  conseguiram se adaptar, outras sequer puderam acessar os programas disponibilizados. Os ambientes domésticos são ou bastante confortáveis e adaptados para estudar ou absolutamente inviáveis. Entre um e outro, milhões de crianças e jovens sofrem um plus de carga emocional e física para ir acompanhando os  conteúdos que são ministrados por professores despreparados ou mal treinados para essa tarefa de dar aula à distância. 

Isso sem falar do mais importante: o convívio e o aprendizado social que só a escola presencial proporciona, por mais que chats e zooms possam querer emular esse convívio. As amizades, para as crianças e jovens, são muito corpo a corpo, feitas de abraços e beijos, de empurrões e corridas pelos pátios, de trocas de lanches, conversas ao pé do ouvido. Tudo isso desapareceu abruptamente e, agora, passados vários meses, cobra um preço que os cientistas levarão tempo para dimensionar. Mas que é grave, é.

Saber o que fazer é uma das coisas mais difíceis que existem no mundo. E estamos diante de uma delas agora. É a dificílima arte do bem comum.  Devemos tentar retomar as aulas, ouvindo os especialistas e buscando evitar ao máximo o contágio, ou corremos o risco de ampliar os efeitos ainda não demarcados de um ano letivo perdido, um quase ano de confinamento de crianças e jovens sem contato com o ambiente escolar? Tudo isso ganha contornos ainda mais trágicos em um país como o nosso, onde a doença funciona como um colírio para tornar mais clara a visão dos abismos sociais com os quais convivemos no dia a dia como se fosse normal, natural e absolutamente sem importância. Quase trinta por cento dos jovens brasileiros já não frequentam a escola. Com esse ano sabático compulsório, quantos sobrarão? E qual o efeito para a sociedade desse êxodo de crianças e jovens para as franjas do aprendizado?

Não há resposta fácil, isso já deveríamos saber desde sempre. Não é possível esperar o tempo todo que alguém se responsabilize e que então possamos dizer “eu só estava fazendo o que disseram”. Por outro lado, não podemos aceitar que a incompetência, a negligência, a má fé – que é a face mais grave da ignorância – transformem as decisões difíceis em consequências desastrosas. As vítimas, tudo leva a crer,  serão as mesmas pessoas que, com ou sem pandemias, sofrem da doença crônica que mais mata em nosso país: a invisibilidade.


* Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com

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