I Congresso Nacional de Direito Médico e da Saúde do IMKN analisa desafios do setor e propõe soluções para evitar colapso do sistema
O mercado de planos de saúde no Brasil alcançou a marca histórica de 51,4 milhões de beneficiários em agosto de 2024, segundo levantamento do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS). Isso significa que, a cada quatro brasileiros, um utiliza esse recurso — um sistema que oferece cobertura adicional aos serviços de saúde por meio de empresas privadas (operadoras), como planos de autogestão, medicina de grupo, cooperativas médicas e seguros de saúde.
De acordo com o presidente da Comissão de Direito Médico, Odontológico e da Saúde da OAB de Uberlândia (MG), coordenador-geral e docente da Pós- Graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde do Instituto Goiano de Direito (IGD), Gabriel Massote, esse não é um número insignificante. “Ele reflete o crescimento desse mercado, que apresenta faturamentos na casa dos bilhões de reais, tornando-se um dos produtos de maior valor nominal no país”, revela. “Esse dado evidencia que o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não consegue atender a população com a segurança necessária, levando muitos a optar pela saúde suplementar como complemento”, aponta.
Para o advogado e professor universitário Jordão Horácio da Silva Lima, doutor em Saúde Global e Sustentabilidade (USP) e membro da Comissão Nacional de Direito Médico da Associação Brasileira de Advogados (ABA), essa expansão também foi motivada pelo aumento da renda da população, pelas falhas estruturais e pelo subfinanciamento crônico do SUS.
Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o crescimento do setor foi acompanhado por um aumento nas reclamações sobre atendimento, que registraram alta de 12% entre agosto de 2023 e agosto de 2024. Apenas no Procon-SP, foram contabilizadas 9.537 queixas em 2022, número que saltou para 13.230 em 2023, representando um crescimento de 38%.
Consumidor deve se atentar aos contratos
Muitas reclamações de usuários de planos de saúde decorrem de contratos assinados sem a devida atenção. Por isso, especialistas alertam os consumidores sobre a importância de analisar cuidadosamente as condições oferecidas por cada operadora, garantindo que os planos atendam à realidade de cada família, ao contexto e às expectativas do usuário. Massote destaca a necessidade de verificar a abrangência do serviço e a lista de hospitais credenciados. “É essencial que o plano ofereça cobertura nos hospitais com os quais o paciente já está familiarizado, especialmente aqueles onde seus médicos costumam atender”, afirma.
Outro aspecto crucial refere-se à troca de operadora. “Ao mudar de plano de saúde, é fundamental compreender o conceito de carência e sua diferença em relação a doenças preexistentes. Algumas operadoras oferecem ‘compra de carência’, mas podem impor até 24 meses sem cobertura para condições já diagnosticadas. A portabilidade de carência, realizada pelo site da ANS, é uma ferramenta essencial para evitar surpresas. Mesmo que os corretores prometam ausência de carência, isso não garante cobertura para doenças preexistentes. Os consumidores precisam se informar para evitar problemas na transição entre planos”, alerta Massote.
Processos afogam o Judiciário
Com o aumento no número de usuários, é natural que também cresçam as reclamações judiciais, segundo Lima. “Muitos consumidores buscam garantir o cumprimento dos contratos, a cobertura de tratamentos e medicamentos, o que evidencia a necessidade de uma legislação clara e eficaz para resolver desavenças entre pacientes e prestadores de serviços”, pondera.
De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), somente em 2023 foram ajuizadas 565 mil ações relacionadas ao direito à saúde no Brasil — um aumento de 20% em relação a 2022. Destas, 334 mil envolvem a saúde pública (alta de 12,5%) e 238 mil dizem respeito à saúde suplementar (alta de 33%).
Segundo Massote, os dados do CNJ são alarmantes, pois revelam um número recorde de processos legais, maior do que em qualquer outro país. Ele argumenta que essa quantidade excessiva de ações judiciais contribui para a morosidade na tomada de decisões pela Justiça. Essa demora é especialmente preocupante em casos de saúde urgente, quando o tempo pode ser crucial e representar a diferença entre a vida e a morte. “Por isso, quando o médico declara a urgência do tratamento, é papel do advogado destacar essa urgência no pedido ao Poder Judiciário. Dessa forma, é possível que essas situações sejam resolvidas rapidamente na Justiça Brasileira”, detalha.
Cobertura dos planos de saúde não é clara
No Brasil, especialistas apontam que o principal motivo para negativas de cobertura por parte dos planos de saúde está relacionado à recusa em fornecer medicamentos, insumos, órteses, próteses ou procedimentos cirúrgicos. “Essas negativas, frequentemente justificadas pela alegação de que tais itens não estão incluídos no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), levam os consumidores a buscar judicialmente o reconhecimento da cobertura ”, comenta Lima.
“O rol da ANS é uma lista de cobertura obrigatória que abrange mais de 3.500 procedimentos e serviços de saúde, sendo constantemente atualizada pela agência. Embora esse número seja expressivo, muitas novas tecnologias, medicamentos de alto custo e tratamentos inovadores não estão incluídos”, explica Massote. Ele ressalta que atualmente há um debate polêmico sobre o rol da ANS e sua natureza, ou seja, se é obrigatório ou apenas uma referência. “Se for taxativo, os planos de saúde só precisam cobrir o que está na lista. Porém, a Lei Federal nº 14.454/2022 define que o rol é uma base mínima e permite que outros tratamentos sejam analisados caso a caso”, detalha.
Dessa forma, quando uma operadora nega a cobertura de um tratamento que não está no rol da ANS, recorrer à Justiça tem sido a única alternativa para os beneficiários, segundo especialistas. “O Judiciário pode determinar a cobertura desde que sejam atendidos certos requisitos legais, como a comprovação de que o tratamento indicado possui evidências científicas sólidas e que o paciente já tenha utilizado, sem sucesso, as tecnologias disponíveis no rol”, esclarece Massote.
“As operadoras de saúde frequentemente se sentem à vontade para negar tratamentos porque, sob sua perspectiva, essa prática muitas vezes compensa. Isso ocorre porque nem todos os pacientes que recebem uma negativa buscam o Judiciário. Muitos aceitam a recusa e ficam sem acesso ao tratamento, enquanto outros se conformam e assumem os custos das tecnologias e procedimentos necessários. No entanto, essa situação é atípica, já que apenas uma pequena parcela dos brasileiros tem condições de custear tratamentos de alto custo. Assim, mesmo cientes de que podem receber decisões judiciais desfavoráveis, as operadoras assumem um risco calculado ao negar a cobertura, confiantes de que nem todos os pacientes buscarão seus direitos na Justiça. Essa lógica perpetua um ciclo em que as negativas se tornam práticas recorrentes, resultando em um aumento contínuo de ações judiciais movidas por aqueles que lutam para garantir seu direito ao tratamento”, completa.
Prejuízo das operadoras refletem no bolso do consumidor
O problema parece uma bola de neve. O paciente não consegue acesso ao procedimento ou medicamento, a operadora é obrigada a arcar com custos inesperados, e o prejuízo acaba sendo repassado aos consumidores por meio de aumentos nas mensalidades. Em 2023, os planos de saúde registraram uma alta média de até 25%, de acordo com relatório do BTG Pactual — reajustes muito superiores à inflação oficial do ano, que foi de 4,62%.
Um levantamento da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), com base em dados da ANS, aponta que as operadoras acumularam um prejuízo de R$ 5,5 bilhões com despesas judiciais em 2023 — um aumento de 37,6% em relação ao ano anterior. Nos últimos cinco anos, os custos com a judicialização somaram R$ 17 bilhões. “Os números de processos no Brasil envolvendo o sistema de saúde, seja público, privado ou suplementar, são os maiores do mundo e continuam crescendo. Essa judicialização encarece todo o sistema”, assegura Isadora Cé Pagliari, advogada do núcleo de Healthcare e Life Sciences do escritório Vernalha Pereira e vice-presidente do Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN).
Segundo ela, o rombo gerado por processos judiciais, fraudes e desperdícios compromete gravemente a viabilidade dos planos de saúde torna. Para se ter uma ideia, entre 1999 e 2023, o número de operadoras no Brasil caiu de 1.380 para 677. Nesse período, 93 liquidações extrajudiciais foram decretadas desde 2013, e a ANS suspendeu 1.079 planos de 180 operadoras nos últimos cinco anos, de acordo com dados do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS).
Outro fator relevante, segundo Isadora, é que o aumento dos processos por suposto erro médico impulsiona a prática da medicina defensiva. Nessa abordagem, profissionais de saúde adotam medidas excessivamente cautelosas, como a solicitação de exames e procedimentos além do necessário. “Esse comportamento gera custos adicionais para as operadoras, que inevitavelmente são repassados aos valores das mensalidades”, destaca. Dados do IESS indicam que 40% dos exames realizados no Brasil são desnecessários, resultando em um gasto anual de aproximadamente R$ 12 bilhões.
Soluções não dependem apenas da Justiça
Para Lima, o número de processos judiciais na área da saúde deve continuar crescendo, e não há expectativa de uma solução simples no curto prazo. ”É fundamental que a sociedade, incluindo organizações civis e órgãos competentes, participe ativamente da compreensão do problema“, ressalta. Ele enfatiza que , a discussão não deve se limitar a decidir se o Poder Judiciário deve conceder ou não um medicamento de alto custo, mas deve avançar para compreender as razões que tornam esses medicamentos tão onerosos. “Isso requer uma análise crítica e uma ação política efetiva para enfrentar o sistema internacional de propriedade intelectual e a regulação de preços de medicamentos, conduzida pela CMED, vinculada à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”, esclarece.
“Promover a introdução de medicamentos a preços mais acessíveis facilitará sua inclusão tanto na saúde suplementar quanto no SUS, contribuindo para a redução da judicialização. A verdadeira solução para essa questão está no aprimoramento das políticas públicas de saúde, assegurando um atendimento de qualidade, especialmente para uma população que envelhece e demanda cada vez mais medicamentos e tecnologias de média e alta complexidade. Ignorar uma abordagem holística nas políticas de saúde, seja no setor público ou privado, resultará em um aumento contínuo da judicialização, tornando a resolução desse problema ainda mais desafiadora”, conclui Lima.
Congresso promove debate imparcial
Isadora Cé Pagliari, Gabriel Massote e Jordão Horácio da Silva Lima compartilham suas experiências e conhecimentos no I Congresso Nacional de Direito Médico e da Saúde, promovido pelo Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN), em parceria com o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) e a Escola Judicial do Paraná (EJUD-PR).
O evento reúne 36 renomados juristas, magistrados, advogados, médicos e outros profissionais da saúde, nos dias 28 e 29 de novembro, no TJPR. Por meio de palestras, o congresso promove um diálogo interdisciplinar sobre temas como responsabilidade civil médica, bioética, direito médico e inovações tecnológicas no setor da saúde.
A programação inclui palestras, painéis temáticos e o lançamento da obra coletiva “Direito Médico e Bioética: Decisões Paradigmáticas”, coordenada pela presidente do IMKN, Rafaella Nogaroli, e pelo professor e desembargador Miguel Kfouri Neto. “Este congresso é uma oportunidade única para atualização, aprendizado e troca de experiências sobre questões críticas e emergentes que impactam tanto o Direito quanto a Medicina. Além de discutir os desafios práticos e teóricos enfrentados no dia a dia por operadores do Direito e profissionais da saúde, o evento trará debates sobre novas tecnologias — como inteligência artificial, engenharia genética e reprodução assistida —, bem como sobre judicialização da saúde e os avanços jurídicos e bioéticos na proteção dos direitos dos pacientes”, adianta Rafaella.
No último painel, serão debatidos temas como a judicialização da assistência farmacêutica, o home care, o fortalecimento dos núcleos de apoio técnico nos tribunais de justiça e a criação de protocolos operacionais para a execução das decisões relacionadas à saúde suplementar. ”Essas questões são cruciais e estão no centro do debate sobre a judicialização da saúde suplementar, sendo apresentadas e discutidas no Congresso por especialistas de alto nível”, adiciona Lima.
Massote acrescenta que o painel incluirá um tópico específico voltado sobre os efeitos da alteração da Lei nº 14.454 em relação ao rol da ANS, além das principais decisões judiciais relacionadas ao tema. “Essa troca de conhecimento e experiências entre especialistas, operadores do Direito e juristas contribuirá para uma compreensão mais aprofundada das implicações legais e práticas na saúde suplementar, bem como dos desafios enfrentados nesse cenário”, afirma.
Segundo ele, o Congresso adotará uma postura imparcial sobre o tema, contemplando as perspectivas de pacientes, juristas, médicos e operadoras de saúde. “Essa abordagem é essencial, pois demonstra que o aumento dos custos associados a tratamentos pode, inevitavelmente, resultar em elevações nas mensalidades dos planos — uma questão que será discutida de forma equilibrada durante o evento”.
As inscrições são gratuitas e podem ser realizadas no site do IMKN, no qual também está disponível a programação completa do evento, que será 100% presencial. As vagas são limitadas à capacidade do Tribunal de Pleno do TJPR, que comporta 400 pessoas. Em alinhamento com a função social do IMKN, será solicitada na entrada a doação de 5 kg de alimentos não perecíveis, que serão destinados a instituições com projetos sociais.
Serviço
I Congresso Nacional de Direito Médico e da Saúde do IMKN
Tema: Inovação, Ética e Justiça: Desafios no Direito Médico e da Saúde
Data: 28 e 29 de novembro de 2024
Local: TJPR (Rua Prefeito Rosaldo Gomes Mello Leitão, Centro Cívico, Curitiba/PR)
Horário: 9h às 12h / 14h às19h
Entrada gratuita (doação de 5 kg de alimentos não perecíveis)
Vagas limitadas
Inscrições e informações: www.imkn.com.br