*Carmem Murara
Seja qual for o tema, é só à medida que iniciativas, ações e práticas vão sendo adotadas pela sociedade que se cria uma cultura forte frente a algo. Isso é assim tanto no Brasil quanto no resto do mundo. No entanto, se fizermos um rápido recorte do tema “solidariedade”, há muito o que se considerar. Culturalmente, o nosso país é solidário em situações de emergência, mas não tanto no cotidiano. Tal análise é diferente em um país como os Estados Unidos, por exemplo, um dos líderes no Ranking Global de Solidariedade e que culturalmente valoriza iniciativas que contribuem para a sociedade, seja por meio de doações, de tempo ou de dinheiro.
O mesmo país ensina, ainda na fase escolar, a importância da filantropia para a sociedade, ou seja, introduz desde a infância a relevância de se dedicar a causas utilizando recursos e conhecimento. Ainda não temos essa prática tão bem estabelecida no Brasil e, talvez esse seja um dos motivos pelos quais nossa sociedade ainda não a incorporou da maneira que gostaríamos. De acordo com o estudo “O futuro da filantropia no Brasil: contribuir para a justiça social e ambiental”, lançado pelo Instituto Beja, o investimento atual no terceiro setor brasileiro ainda é muito baixo. O estudo indica que o potencial de doações em nosso país seria em torno de US$ 28 bilhões por ano, enquanto as estimativas mostram que o Brasil investe cerca de sete vezes menos (US$ 4 bilhões). Apesar de ficarmos atrás de muitos países nesse aspecto, no último ano o Brasil alcançou a posição entre os 20 primeiros no mundo. Subimos 36 posições de 2021 para 2022 e 56 posições na média dos últimos 10 anos, e atualmente ocupamos a 18.ª colocação, segundo o World Giving Index 2022 da organização britânica Charities Aid Foundation (CAF), representada no Brasil pelo IDIS – Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social.
Mas o que isso quer dizer? Que somos destaque mundial quando o assunto é solidariedade? Sim e não. Estamos entre os 20 melhores, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido e temos de lutar para que o trabalho das instituições filantrópicas seja reconhecido pela sociedade e pelos governos.
Em 2020, as 27.384 instituições filantrópicas detentoras da Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (CEBAS) realizaram 230 milhões de procedimentos hospitalares; concederam quase 800 mil bolsas de estudo na Educação Básica e no Ensino Superior e disponibilizaram mais de 625 mil vagas para pessoas em situação de vulnerabilidade social, segundo a pesquisa “A Contrapartida do Setor Filantrópico no Brasil”, divulgada pelo Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas (Fonif). O mesmo estudo indica também que para cada R$ 1,00 que uma filantrópica tem de imunidade tributária, ela retorna para a sociedade R$ 9,79 reais em prestação de serviço de qualidade em Educação, Saúde e Assistência Social, beneficiando a população mais vulnerável desse país.
Com essas informações em mãos, precisamos desmistificar muitos conceitos que envolvem a filantropia, sendo o principal deles a ideia de que a filantropia se resume apenas à destinação de dinheiro. Devemos compreender que a filantropia é também a doação de tempo, ajuda, conhecimento e trabalho. Uma das soluções que o estudo do Beja sugere é a conquista de espaços em políticas públicas e a melhora no sistema fiscal das doações, o que seria um avanço principalmente para as empresas, responsáveis por financiar grande parte das atividades filantrópicas de grandes causas e ajudar a torná-las mais acessíveis à sociedade. Chamamos isso de filantropia empresarial ou corporativa. Tal prática é fundamental em um país que ainda sofre com a desigualdade social, e é essencial para garantir que os recursos alcancem áreas e projetos desatendidos. Segundo dados do Censo GIFE 2020, das 161 organizações de investidores sociais privados associados à rede, 65% eram empresas, 20% de caráter familiar e 15% independentes.
Nos últimos anos, a pauta ESG tem ganhado destaque no mundo dos negócios e na sociedade em geral, assim como a filantropia. Mesmo que ambas tenham conceitos e práticas diferentes, elas andam de mãos dadas, formando quase uma parceria para contribuir com um mundo melhor. Essa convergência entre elas cria uma aliança poderosa, beneficiando não apenas a sociedade, mas também as empresas. A integração de práticas ESG ajuda a aumentar a reputação da empresa, atrair investidores e promover uma cultura interna de sucesso. Além disso, à medida que a sociedade exige mais responsabilidade social das companhias, aquelas que adotam a filantropia e os princípios ESG estão mais bem preparadas para prosperar em um ambiente de negócios cada vez mais consciente. Está mais do que na hora de abraçarmos essa parceria e trabalharmos juntos para um futuro melhor.
Sabemos que este é um trabalho minucioso, quase de “formiguinha”. Mas é um esforço que requer senso de coletividade e o entendimento de que só assim poderemos estabelecer uma cultura verdadeiramente solidária.
*Carmem Murara é diretora de Relações Institucionais e Governamentais do Grupo Marista