Artigo: Base Nacional Comum: o caso da História

Por Daniel Medeiros, Doutor em Educação Histórica e professor de História no Curso Positivo

A consciência histórica, segundo o filósofo Jorn Rusen, articula, fundamentalmente, dois elementos: o passado, como experiência, e o presente e o futuro, como campos de ação orientados por este passado. O aprendizado da História  tem como função ajudar a compreender a realidade passada para agir na realidade do presente. Por isso, a aprendizagem da História é um processo de digestão de experiências do tempo em forma de competências narrativas, entendendo-se “competência narrativa” como a habilidade para narrar uma história através da qual a vida prática recebe uma orientação no tempo.
Esse aprendizado de História não se confunde com o aprendizado de um cordel de fatos ao longo do tempo. Não se confunde com a evolução dos homens, pois refere-se aos homens (crianças, jovens) de hoje.  Aprendemos História para o tempo presente e para o tempo futuro. E esse repertório é múltiplo e assincrônico. O filósofo Walter Benjamin, na tese IX de “Sobre o Conceito de história” usa  uma imagem para compor uma alegoria de crítica à História afetada pelo conceito de progresso. Trata-se do quadro de Paul Klee, “Ângelus Novus”.
Benjamin  assim o descreve: “Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas”. E então faz a comparação com a História “dominada” pela força irresistível do progresso: “O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fecha-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade”.
Jorn Rusen  entende o ensino de História como orientação e como compreensão. Para isso, as crianças e os jovens precisam desenvolver estruturas históricas úteis para que se orientem no tempo. Rusen define uma tipologia básica da consciência histórica, pressupondo um uso do passado como orientação do presente, uso este que pode repetir, modelar-se, negar ou integrar o passado como fundamento das ações do agora. No entanto, considerando que não há UMA história do passado, os alunos devem compreender as ferramentas de construção deste passado, isto é, uma “meta-história”, permitindo a eles um controle maior do próprio aprendizado e uma relação mais intensa e crítica dos passados que possam orientar suas ações. Diz Rusen: “Para a narrativa histórica é decisivo (…) que sua constituição de sentido se vincule à experiência do tempo de maneira que o passado possa tornar-se presente no quadro cultural de orientação da vida prática contemporânea. Ao tornar-se presente, o passado adquire o estatuto de ‘história’”.
A aquisição do conhecimento histórico exige, portanto, uma compreensão dos mecanismos de elaboração histórica (meta-história) e visa uma “constituição de sentido” que orienta a ação dos alunos e alunas. O que me parece importante ressaltar é que a consciência histórica não se resume a conhecer o passado. Ela oferece estruturas para que, por meio delas, o conhecimento histórico tenha o condão de agir como meio de compreensão do presente e antecipação do futuro. A consciência histórica é, ao mesmo tempo, o âmbito e o objetivo do aprendizado histórico. Desta forma, apreender as operações mentais mais importantes para a compreensão histórica e, igualmente, elencar suas funções na vida prática,  consiste o que se pode definir como um aprendizado histórico satisfatório.
E é essa a preocupação dos currículos? Rusen estabelece três objetivos prioritários que devem conter o ensino de História e, portanto, a Base Curricular: a competência perceptiva, a interpretação e a orientação histórica, formadoras do que pode ser denominado de “competência narrativa” e que consiste na “faculdade de representar o passado de maneira tão clara e descritiva que a atualidade se converta em algo compreensível e que a própria experiência vital adquire perspectivas de futuro sólidas”. A competência narrativa que Rusen defende e que deve ser apreendida no aprendizado histórico, pode ser decomposta em uma competência baseada na experiência – a competência perceptiva; uma competência interpretativa e ainda em uma competência orientativa.
A competência perceptiva é a que permite distinguir com clareza o passado, na sua diferença e distanciamento do presente. A partir do conjunto de experiências do presente, o passado assume um delineamento próprio e distinto, definindo-se como tal. A competência interpretativa busca, a partir desta distinção, conexões de significados e sentidos com a realidade presente. A competência orientativa é a que integra a História interpretada no fluxo da experiência presente, como capaz de orientar as ações do futuro. Ou como afirma Rusen: “O que é importante descobrir em relação a consciência histórica não é a extensão deste conhecimento implícito, mas o marco de referência e os princípios operativos que dão sentido ao passado”.
Uma Base Nacional Comum para o aprendizado de História deveria começar com esse balizamento: a formação da consciência histórica por meio da apreensão, interpretação e orientação das narrativas sobre o passado, voltados para a constituição de sentidos para o presente e para o futuro. Reduzir, como está sendo feito, a discussão da Base Nacional Comum, a um puxa- repuxa de conteúdos, períodos históricos e contribuições étnicas é muito pouco para o que se pode alcançar com essa mudança. O que é importante, no Ensino Fundamental e Médio, é que as crianças e os jovens sejam capazes de compreender e usar os conceitos que compõem as narrativas históricas  – Povo, Estado, Etnia, Economia, Sociedade, Cultura, etc. – e, sendo expostas a estas narrativas, múltiplas e multiperspectivadas, apresentadas de forma clara e agradável, desenvolver essa orientação cidadã sobre o presente e futuro.
Como o que se espera é uma contribuição de todos nesse momento de construção dessa Base Nacional,  esta é a minha. Penso que ainda há tempo para que o olhar sobre essa mudança possa ainda vislumbrar essas preocupações.

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