*Marcia C. M. Marques
“São as águas de março fechando o verão, é a promessa de vida no teu coração”. Com estes versos, o grande maestro Tom Jobim expressou, de forma simbólica, o valor das águas de março, mês mais chuvoso de grande parte do sul, sudeste e centro-oeste brasileiros, na renovação da vida e do amor. Tom, um grande admirador da natureza e perspicaz observador, nesta canção usou, metaforicamente, elementos possivelmente da região serrana do Rio de Janeiro, para compor uma série de antíteses, tão típicas da natureza real e da natureza humana, que podem ser resumidas na ideia de que os ciclos são importantes para a renovação.
Tom certamente não pensou em nenhuma teoria científica da ecologia quando juntou estes versos, mas eles têm sim um grande significado sobre o funcionamento da natureza. As chuvas torrenciais existem, historicamente, desde que os trópicos são trópicos. As matas, os cerrados e as caatingas dependem da “chuva chovendo”, do “vento ventando” e do “tombo da ribanceira” para lavar e renovar os solos, estimular o brotamento e a florada das plantas e dar chances de novas espécies de plantas e animais ali chegarem. Especialmente em regiões montanhosas, como na Mata Atlântica, as chuvas de março podem causar grandes movimentos de terreno que descem montanha abaixo. A terra exposta pelos deslizamentos é logo colonizada por novas espécies, diferentes das que estavam por lá. Em um estudo realizado pelo grupo de pesquisa da Universidade Federal do Paraná (UFPR), verificamos que a diversidade de formas de folhas e caules das plantas, exercendo funções também bastante diversas, é muito alta nestas cicatrizes de antigos deslizamentos. Com o tempo, na soma de vários deslizamentos, a diversidade da Mata Atlântica aumenta, resultando neste bioma extremamente diverso e exuberante que todos conhecemos. São desastres do bem e a “promessa de vida” das matas tropicais.
Infelizmente, nem tudo é riqueza nesta história. Quando não há planejamento para a ocupação dos espaços rurais ou urbanos, e as construções de cidades e povoados chegam até as encostas e sopés das montanhas, o resultado pode ser catastrófico: “É o carro enguiçado, é a lama, é a lama”. Vivenciamos, em todos os verões, notícias sobre alagamentos, deslizamentos, soterramentos em boa parte do Brasil, causando tristeza e morte. As chuvas e as montanhas sempre estiveram lá, mas o homem chegou e ocupou o lugar mais propenso a desastres. Não tem como mudar a natureza, mas tem como evitar o embate com ela, planejando a ocupação, removendo populações em situações de risco, promovendo a readequação das vias pluviais em regiões urbanizadas, entre outros. E isso tem que ser feito rapidamente, pois, com as mudanças globais em curso, as chuvas irão aumentar a níveis muito além dos padrões históricos. O homem não vai resistir. As matas diversas das encostas das montanhas também não. “É o fundo do poço, é o fim do caminho”.
*Márcia C. M. Marques é cientista, ecóloga, professora da Universidade Federal do Paraná e faz parte da Rede de Especialistas de Conservação da Natureza.
Tom certamente não pensou em nenhuma teoria científica da ecologia quando juntou estes versos, mas eles têm sim um grande significado sobre o funcionamento da natureza. As chuvas torrenciais existem, historicamente, desde que os trópicos são trópicos. As matas, os cerrados e as caatingas dependem da “chuva chovendo”, do “vento ventando” e do “tombo da ribanceira” para lavar e renovar os solos, estimular o brotamento e a florada das plantas e dar chances de novas espécies de plantas e animais ali chegarem. Especialmente em regiões montanhosas, como na Mata Atlântica, as chuvas de março podem causar grandes movimentos de terreno que descem montanha abaixo. A terra exposta pelos deslizamentos é logo colonizada por novas espécies, diferentes das que estavam por lá. Em um estudo realizado pelo grupo de pesquisa da Universidade Federal do Paraná (UFPR), verificamos que a diversidade de formas de folhas e caules das plantas, exercendo funções também bastante diversas, é muito alta nestas cicatrizes de antigos deslizamentos. Com o tempo, na soma de vários deslizamentos, a diversidade da Mata Atlântica aumenta, resultando neste bioma extremamente diverso e exuberante que todos conhecemos. São desastres do bem e a “promessa de vida” das matas tropicais.
Infelizmente, nem tudo é riqueza nesta história. Quando não há planejamento para a ocupação dos espaços rurais ou urbanos, e as construções de cidades e povoados chegam até as encostas e sopés das montanhas, o resultado pode ser catastrófico: “É o carro enguiçado, é a lama, é a lama”. Vivenciamos, em todos os verões, notícias sobre alagamentos, deslizamentos, soterramentos em boa parte do Brasil, causando tristeza e morte. As chuvas e as montanhas sempre estiveram lá, mas o homem chegou e ocupou o lugar mais propenso a desastres. Não tem como mudar a natureza, mas tem como evitar o embate com ela, planejando a ocupação, removendo populações em situações de risco, promovendo a readequação das vias pluviais em regiões urbanizadas, entre outros. E isso tem que ser feito rapidamente, pois, com as mudanças globais em curso, as chuvas irão aumentar a níveis muito além dos padrões históricos. O homem não vai resistir. As matas diversas das encostas das montanhas também não. “É o fundo do poço, é o fim do caminho”.
*Márcia C. M. Marques é cientista, ecóloga, professora da Universidade Federal do Paraná e faz parte da Rede de Especialistas de Conservação da Natureza.