Por Cicero Urban, médico oncologista e mastologista, professor de Bioética e de Metodologia Científica na Universidade Positivo e vice-presidente do Instituto Ciência e Fé
Os Jogos Olímpicos e Paralímpicos trouxeram à tona no Brasil e no mundo alguns temas bioéticos importantes. A questão do aborto tem sido objeto de intensos debates com o vírus zika – a possibilidade de contaminação foi a alegação de vários atletas para não vir ao Rio – e as Paralimpíadas levantaram um debate sobre a eutanásia. A paratleta belga Marieke Vervoort, 37 anos, reacendeu a polêmica ao afirmar que, se não tivesse a opção da eutanásia, teria cometido suicídio. Na Bélgica a eutanásia é permitida, ao contrário do Brasil e da grande maioria dos países.
Normas éticas e legais existem em virtualmente todas as sociedades com o objetivo de proteger a vida humana e regular as circunstâncias em que ela pode ou não ser prolongada. O maior patrimônio de uma sociedade – qualquer que seja – é, estruturalmente, a pessoa humana. A sociedade existe, afinal, em razão das pessoas que a constituem. Nenhuma sociedade liberal e democrática pode existir sem elaborar critérios de justiça e, dessa forma, sem deixar de limitar o exercício da autonomia individual. Limites estes impostos pela lei e previstos no próprio exercício da cidadania.
Assim, existe de fato e de direito um nexo entre a dimensão moral da vida pessoal e a sua relevância pública. O homem, enquanto membro de uma sociedade – enquanto cidadão –, deve aceitar que algumas de suas escolhas sejam limitadas e reguladas. E, no caso da eutanásia, a moral pessoal e a vida pública entram em conflito. O interesse individual das pessoas nessa temática reflete o temor da perda do controle da situação e da dignidade na fase final da vida. Esse temor está bem explícito na forma como a paratleta se manifestou.
Eutanásia é o ato de provocar diretamente e voluntariamente a morte de alguém com uma doença ou debilidade grave, com o objetivo de eliminar a dor e o sofrimento. Contudo, uma boa morte não significa apenas uma morte sem dor ou sem sofrimento, mas uma morte preparada espiritualmente e vivida no conforto da família e dos amigos, e com assistência adequada.
Além disso, sempre é bom lembrar que a eutanásia é uma decisão moral (no sentido estrito da palavra), não baseada em estudos científicos. É uma decisão baseada em valores mais que em estudos clínicos, cujos riscos éticos e as consequências sociais não são totalmente conhecidos. A sua grande fragilidade está exatamente no fato de permitir que, dentro de uma sociedade, possa ser violado o dever de não matar um ser humano inocente. Mudaria de uma forma drástica a ética hipocrática. Obrigaria que este tema fosse abordado dentro dos cursos de Medicina e alteraria o relacionamento médico-paciente. O paciente vai ao médico para um tratamento que possa salvar ou melhorar a sua vida ou para eliminá-la? E mais: quem poderia ser eliminado, se o sofrimento é uma experiência individual que não pode ser medida?
Eliminar o paciente terminal com procedimentos como a eutanásia e o suicídio assistido (ambos não são muito diferentes do ponto de vista moral) é bem mais fácil que acolher e tratar. Quando não há nada mais a ser feito, na realidade há muito ainda a ser feito. A assistência a quem está morrendo exige que sejam mantidos tratamentos que reduzam a dor e o sofrimento. Exige profissionais de saúde com uma formação técnica e humanística adequada, dedicados ao manejo da terminalidade em todas as suas dimensões.
Marieke Vervoort é um grande exemplo de superação para todos nós. Encontrou forças e motivação no esporte para seguir em frente com sua vida, apesar de todas as dificuldades e limitações. Este é o caminho a ser seguido. E a missão nossa, enquanto profissionais de saúde, é dar condições para que os pacientes vivam melhor em todas as fases de suas vidas, inclusive a fase final. A eutanásia não é a solução. Ao contrário, é a falta dela.