Artigo: A japona, o suor e a Revolução Russa

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Por Daniel Medeiros, Doutor em Educação Histórica pela UFPR e professor do Curso Positivo

Eu era ainda bastante jovem quando tudo aconteceu. Migrante, recém chegado ao Sul Maravilha, fui matriculado em uma escola particular por meu pai que nunca esquecia de lembrar-me que “educação era a única herança que tinha para me deixar”. Recordo-me que a primeira coisa que notaram em mim na escola foi o sotaque “estranho”. A segunda é que ia com a mesma japona todos os dias para a aula. E que não tinha dinheiro para comprar coisas na cantina. E que não tinha telefone. Não posso confirmar, mas creio que foi ali que a expressão “ódio de classe” passou a fazer algum sentido para mim.

Ia de ônibus para a aula e morava no outro lado (não o lado geográfico, o lado social) da cidade. E o ônibus parava longe da escola. Andava por cerca de 40 minutos e chegava transpirando, para o desagrado dos meus “colegas”. A sala era cheia e as carteiras muito próximas. Eu sentia os comentários que me humilhavam com os olhares e certos gestos de mão. Sentia-me ofendido, queria explicar a eles o sacrifício de meu pai em me colocar ali, das expectativas que ele alimentava de eu poder dar aos meus filhos o que eles tinham sem nem perceberem. E por terem, acreditavam que eram diferentes (melhores) e, por isso, eu não “deveria” estar ali, expondo minhas humanas glândulas sudoríparas e minha japona repetida ou meu sotaque “engraçado”.

Foi um ano difícil, uma provação infernal. O que me acalentava era passar as tardes na Biblioteca Municipal, com os livros e o silêncio. A princípio, preferia os textos de teatro, pois poderia ler um por dia. Mas logo passei aos romances. De preferência os sociais: John dos Passos, Steinbeck, Gorki, Carlos Fuentes, Garcia Marquez, Jorge Amado, Graciliano, e os existencialistas, como Camus e Sartre. Como Maquiavel no exílio, era ali que me encontrava entre amigos, com quem podia conversar e aprender. E imaginava mundos novos, com pessoas que não reconheciam as outras pela japona ou pelo sotaque. Um mundo no qual o suor fosse tema de livro e não motivo de cara feia.

Era o final do triste ano de 1981: o Brasil ainda era uma ditadura, a inflação chegava aos três dígitos, e a ideia de justiça social, uma subversão. O general na presidência dizia preferir o cheiro dos cavalos ao do povo. Como muitos dos meus colegas de sala. Eu, jovem de tudo, raivoso com tudo, atordoado por tudo, sonhava com tempos de grandes mudanças. Tempos que permitissem que a minha raiva e a minha incompreensão encontrassem destino. Tempos de mãos fechadas, em vez de mentes abertas. Foi nesse estado de espírito que assisti ao filme “Reds”.

Dirigido por Warren Beatty, “Reds” conta a história do jornalista americano John Reed, que cobriu a Revolução Russa de 1917. Tornou-se amigo de Lênin e foi enterrado com honras pelo governo soviético. Reed escreveu “Os 10 dias que abalaram o mundo”, contando os bastidores da primeira revolução operária da história. Uma narrativa que incendiou corações e mentes de gerações e gerações de desvalidos e que alimentavam a esperança romântica, mítica, de uma sociedade de iguais, na qual todos teriam almas generosas, buscando sempre “dar a cada um de acordo com a sua necessidade e oferecer de acordo com sua capacidade”.

Saí do filme emocionado. As cenas dos grandes discursos de Lênin, Trotsky, a multidão, a vitória sobre os burgueses, o estandarte vermelho, faziam meu sangue ferver e meu rosto corar. Eu, um jovem de 16 anos, havia encontrado o meu papel no mundo: lutar para derrubar barreiras e acabar com a miséria e a opressão; dar voz aos desvalidos; construir uma sociedade na qual todos pudessem ter orgulho e que ninguém precisasse sentir vergonha por ser quem é. Trinta e cinco anos depois: lógico que a Revolução Russa não realizou nada disso. Após uma guerra civil fratricida, a morte de Lênin provocou uma sangrenta disputa pelo poder, vencida pelo burocrata Stalin, que instalou um dos mais violentos regimes políticos de todos os tempos. No entanto, meu sentimento de jovem diante das veleidades de muitos, do julgamento superficial das aparências, do esnobismo sem caráter, da falta de generosidade e coleguismo, esse permanece um problema em aberto, à espera de uma “revolução” humana, fraterna, gentil.  A luta continua!
 

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